29 de novembro de 2011
Matéria publicada na edição 264 da revista Hardcore:
Se até o advento da internet como plataforma de exibição audiovisual a produção de filmes de surf no Brasil era incipiente e o acesso às produções estrangeiras bastante limitado, hoje em dia fica até difícil acompanhar o volume de lançamentos disponibilizado na grande rede digital.
Em meio a essa enxurrada de conteúdos, os catarinenses Loic Wirth, Mickey Bernardoni, Pablo Aguiar e o gaúcho Pietro França ganharam destaque ao aparecer com frequencia nos créditos principais de algumas das mais interesantes produções audiovisuais atuais - tanto em filmes e webisodes de grandes marcas e publicações de surf, quanto em produções independentes que circulam na internet ou em DVDs.
Representantes da geração de videomakers que começou a editar os seus filmes em meio à revolução digital dos últimos anos, estes jovens realizadores tiveram a valiosa oportunidade de desfrutar da democratização proporcionada pelo acesso facilitado a equipamentos de alta tecnologia e plataformas de exibição, que lhes permitiu dar plena vazão às suas aspirações criativas com qualidade profissional e custos reduzidos. Juntos, eles acabaram por estabelecer Santa Catarina como um novo pólo na produção de filmes de surf, a exemplo do que ocorreu no Rio de Janeiro na década passada, com o quinteto de amigos formado por Pepê Cezar, Julio Adler, Gustavo Bomba, Marcelus Viana e Rafael Mellin.
Influenciados pelos primeiros lançamento desta turma - como as séries Cambito e Lombrô -, o lendário programa de televisão Realce e os principais títulos estrangeiros a partir do final dos anos 80, este grupo de novos videomakers catarinenses começou a trilhar o seu caminho profissional engrenando uma série de trabalhos para grandes marcas de surf como Volcom, Billabong e Red Bull, que servem de base para buscar uma realização pessoal também em trabalhos autorais.
Roteiro
Mickey cresceu assistindo às produções de Herbie Fletcher, Jack McCoy e Taylor Steele e lembra que, quando moleque, não tinha a menor preocupação com a estética dos filmes, pois o importante era ver imagens de ação que o fizeseem sentir vontade de correr pra dentro d`água. Filho de uma fotógrafa artística, já aos 14 anos ele começou a se aventurar em sua futura profissão, brincando de editar imagens de surf usando fitas VHS e discman.
Pietro lembra do impacto de assistir às performances de Neco Padaratz, Binho Nunes e Renato Wanderley na clássica série Cambito nos anos 90, além de consumir com voracidade todas as produções estrangeiras que chegavam em suas mãos. Apaixonado pelo surf, o universo das filmagens surgiu para ele como um segundo hobby há cerca de oito anos, quando começou a filmar os amigos surfando nas ondas de Floripa e Hossegor.
Pablo aponta como impulso inicial as lembranças de seu pai o levando desde pequeno para assitir a muitos filmes no cinema. Já na adolescência, começou a alugar os poucos filmes de surf em VHS disponíveis nas locadoras e surf shops. Aos 16, ele começou a pegar o gosto de produzir o seu próprio material a partir das sessões de surf com os amigos.
Loic acredita que a sua principal motivação para filmar não veio propriamente dos filmes de surf que assistiu, mas das experiências desfrutadas a partir do seu envolvimento pessoal com o surf. Do desejo de registrar estas emoções surgiu a ideia de começar a filmar e se envolver com o universo audiovisual, inspirado na estética de filmakers como Ryan Thomas.
Produção
Ok, produzir um filme de surf nos dias de hoje é relativamente fácil e com criatvidade se pode realizar coisas boas até mesmo com uma camera de celular. Mas como fazer para se destacar em meio à multidão? Facilidades técnicas a parte, estes realizadores concordam que, em um mundo onde somos bombardeados por imagens, ter um olhar que consiga transmitir uma emoção capturada ao espectador é o que prevalence ao fim da exibição, elevando e distinguindo o trabalho de um diretor.
“Uma camera e um computador hoje em dia é quase como um quadro e um pincel, mas nem todo mundo vai conseguir transmitir a sua expressão”, afirma Pablo, que teve a sua recente produção Nobody is a Kid Anymore - uma cobertura do desempenho da nova geração de surfistas profissionais brasileiros na última temporada havaiana - encartada na edição de março da Hardcore.
Criado nas ondas de Balneário Camboriú, Pablo começou a filmar por influência de Mickey, um surfista profissional local apaixonado por fotografia e em busca de solucão para o velho dilema do surfista fissurado que quer filmar, mas também não abre mão de pegar as suas ondas. Foi assim que os dois engatilharam diversas produções se revezando na camera enquanto o outro ia para a água.
A partir desta experiência, Mickey imprimiu recentemente o mesmo sistema de revezamento com o surfista profissional Marcos Sifu, na produção de videos para uma agência de viagens especializada em surf. O bom resultado alcançado levou a dupla a investir em um filme de maior duração baseado nestas imagens. Batizado de "Por Conta Própria", a projeto encontra-se em fase de finalização e segue o roteiro clássico dos filmes de surf, ao oferecer um relato de viagens, captando as culturas e paisagens por onde a dupla passou nos ultimos dois anos.
E se Pablo aprendeu a filmar com Mickey, o talentoso Loic conta que foi o amigo e conterrâneo de Floripa, Pietro, quem colocou a primeira filmadora em suas mãos, quando eles se encontraram meio que por acaso em uma temporada de surf nos beachbreaks franceses. O jovem, que na época editava suas cenas preferidas pescadas em seus filmes de surf favoritos por pura curtição, em pouco tempo estava produzindo webisodes para a revista Surf Europe e no ano passado alcançou grande reconhecimento mundial com o clipe do surfista Marco Giorgi selecionado para integrar o projeto Innersection de Taylor Steele.
Impulsionado por este sucesso, atualmente Loic está finalizando o seu projeto mais ambicioso, o filme independente “Intentio”, que não por acaso conta com Pietro como segunda câmera em diversas cenas rodadas pelo mundo. “Meu trabalho é muito intuitivo. Sempre procuro uma boa cinematografia, onde a proprio frame fala por si mesmo”, explica Pietro, que começou a trabalhar profissionalmente como cinegrafista de surf ao embarcar em filmagens com o surfista Binho Nunes no filme “Fé em Deus e Pé na Tábua”. Atualmente ele tem viajado bastante, registrando os passos do freesurfer francês Benjamin Sanchis mundo afora.
Muito além da confluência geográfica, se tivessemos que apontar o elemento fundamental que representa a produção desta nova geração de videomakers seria a ênfase na qualidade da fotografia, que passa pela valorização de cada cena como se estivessem filmando em película: “Hoje em dia é muito fácil sair filmando, mas acho que a pessoa deve apertar o botão de gravar somente quando realmente visualizar alguma coisa interessante”, acredita Loic, que curte todas as etapas de realização de um filme e sempre soube se cercar de bons surfistas para protagonizar as suas produções.
Na era do “estúdio de um homem só” fica até difícil definir a profissão destes indivíduos que em seus projetos pessoais acumulam quase todas as tarefas de produção - atuando como cinegrafistas e editores -, o que confere um caráter altamente autoral a cada filme realizado. Neste universo multitarefas, o termo “videomaker” soa até meio depreciativo diante de algo mais pomposo como “diretor”, “cineasta” ou mesmo “artista”, que talvez fosse a melhor definição para o trabalho de cada um.
E se a veia criativa de se expressar livremente e divulgar produções autorais independentes ainda não rende grandes frutos financeiros, este espírito “faça você mesmo” ao menos estabelece uma reputação e abre oportunidades profissionais em outras areas, permitindo a eles de alguma forma viver o sonho de trabalhar com surf. “Minha vida sempre foi voltada ao surf e com as filmagens consegui unir as duas coisas que eu mais gosto”, resume Pietro, que revela esta mesma simplicidade em videos autorais de curta duração, despretensiosos em seu formato, mas muito expressivos em sua qualidade artística.
Edição
Seja um conteúdo apoiado por interesses comerciais de uma marca de surf ou uma produção autoral, o filme de surf se consolidou através do tempo como um gênero próprio, contando invariavelmente com a receita: surfistas expressivos + locações exóticas + trilha sonora musical. Apoiados nesta fórmula e movidos por grandes orçamentos para distribuição e promoção, os filmes da série Surf Adventures de Roberto Moura trouxeram o surf com sucesso de volta à grande tela do cinema nacional no incío dos anos 2000.
Mas para conquistar o grande público, um filme de surf tem ainda que ser capaz de contar uma boa história de maneira criativa, como foi o caso de ‘Fábio Fabuloso” e este será sempre um desafio a ser enfrentado por um realizador mais ambicioso. Um dos editores da premiada biografia de Fábio Gouveia, o colunista da Hardcore Júlio Adler lembra que ainda no início dos anos 90, diretores como o australiano Andrew Kidman já mostravam que era possível fazer filmes mais artísticos com cameras de video.
Hoje, com a qualidade técnica nivelada e acessível, ele acredita que as possibilidades de alcançar resultados expressivos dependem ainda mais da originalidade na edição e no roteiro dos filmes, na busca por fugir do lugar comum: “O Taylor Steele faz imagens maravilhosas mas até hoje não sabe contar uma história”, alfineta Júlio sobre o diretor norte-americano de filmes de surf mais badalado no momento.
E se encontrar um roteiro instigante é algo raro no segmento de filmes de surf, o mesmo não se pode dizer sobre o uso criativo dos recursos estéticos como forte atrativo nas produções nacionais mais recentes – que com isso alcançaram um nível de excelência compatível ao que há de melhor nos similares estrangeiros: “Tento buscar a inovação para não me repetir. Sempre que estou trabalhando numa imagem me pergunto se já vi isso em algum lugar e tento imprimir um olhar diferente”, afirma Pablo, que curte inserir trilhas eletrônicas na edição e busca unir o apelo estético do surf e do skate com uma veia de moda e life style muito evidente.
Hoje, nota-se que a emulação do passado está muito em voga e a chamada “onda retrô“ pode ser alcançada com níveis de perfeição pelos quase infinitos recursos de plugins que oferecem toda sorte de efeitos na mesa de edição. Um contexto que busca uma certa “essência perdida” na estética da película queimada e tantos outros efeitos que se juntam à modernas acelerações e slow motions, presente na maior parte das produções atuais.
O talento para navegar sem naufragar nesse mar de possibilidades quase ilimitadas de captação e edição no fim das contas prevalence como diferencial de qualidade no trabalho destes novos diretores. “Muitas vezes faço uma avaliação cerebral do que quero passar através de cada projeto e isso nem sempre implica em usar a melhor câmera, os melhores efeitos, mas antes, a emoção que o video vai passar. Aí, nesse resultado final está o esperado e o mais importante”, explica Mickey, ressaltando o valor do perfeccionismo e da organização como aliados para a consolidação de um estilo próprio.
Distribuição
Com o filme editado, entra em cena a missão de divulgar o trabalho e o espinhoso desafio de torná-lo um sucesso comercial: afinal de contas, seria muito bom poder ganhar a vida produzindo apenas filmes de surf!
Num mundo onde os downloads instantaneos de dados transformam cada filme em mercadoria de divulgação em massa, estes videomakers demonstram uma pitada de nostalgia no ideal de manter o formato DVD vivo, para que o se possa ter um mínimo suporte físico para apreciar a arte das capas e guardar uma coleção palpável de filmes de surf na estante. “O dvd não pode acabar pois é algo que agrega valor. Voce poder ver a capa, ter ele em casa, colecionar, fora as premieres e todo o conceito que rola por trás disso”, aponta Pablo.
Mickey lembra que este esquema de filmes oferecidos gratuitamente como peças promocionais de grandes marcas virou quase um padrão atualmente, então cabe a estas marcas valorizar quem está por trás da produção destes conteúdos. Ele também cita as parcerias com as revistas que encartam os filmes em suas publicações como uma alternativa interessante e com bom potencial financeiro: “Vivemos um tempo de mudanças rápidas, e devemos nos adaptar em velocidade igual”, afirma ele, que encontrou um rentável caminho alternativo para exercitar e apurar a sua paixão pela direção de fotografia produzindo videos de moda.
Num cenário onde a pirataria digital tem efeitos altamente nocivos à construção de um mercado de videos de surf, por outro lado esta troca incontrolável de arquivos oferece a libertadora oportunidade de um indivíduo disseminar qualquer tipo de contéudo sem restrições de público. Por conta disso, estes novos realizadores reconhecem a importância da internet como forma de divulgação viral de seus trabalhos, seja em trailers, teasers ou outras ações promocionais realizadas em parceria com marcas, midias especializada ou de forma independente.
“Acho incrivel o poder da internet em relação a exposição do seu trabalho. É uma plataforma onde o mundo inteiro pode acessar um filme com apenas um clique, e qualquer um pode mostrar seu talento, sem ter que passar pelo nem sempre justo filtro das grandes empresas”, afirma Loic, que viu o trailer de Intentio gerar uma repercussão imediata na mídia eletrônica especializada.
Com grandes afinidades entre sí, a sintonia criativa entre estes personagens se reforça nas parcerias constantes entre Mickey e Pablo, que está abrindo uma produtora junto com Loic, que por sua vez mantém contato direto com Pietro. Inseridos num contexto de filmes pensados para um público global, eles são cidadãos do mundo – até os seus nomes parecem gringos! - que utilizam as melhores ferramentas para exercitar a sua criatividade e mostrar que a produção audiovisual ligada ao surf no Brasil, acompanha diretamente a ascenção dos nossos atletas profissionais no cenário mundial.
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