27 de março de 2011
Na mídia de surf o tema do localismo volta e meia retorna à pauta e reacende a velha questão sobre a legitimidade de atos de violência dentro do mar. As vésperas da abertura do circuito mundial de surf na Gold Coast australiana a briga entre Sunny Garcia (sempre ele!), Jeremy Flores e um jovem surfista local desencadeou novamente a questão em uma série de materias e acaloradas discussões na internet.
O senso comum é que a prática territorial deve mesmo existir para regular a convivência dentro d`água e só tende a se intensificar como forma de combate à superpopulação de surfistas. Esta, por sua vez, é culpa da indústria e da mídia especializada que atrai cada vez mais adeptos para o surf. E assim, todos aqueles que promovem as maravilhas de deslizar sobre as ondas estão contribuindo para, em suma, destruir o prazer do surf como o conhecemos. Então, desde já peço aqui desculpas por propagar a minha paixão pelo surf!
Mas afinal, quem não gosta de surfar sozinho ou com alguns poucos amigos em sua praia preferida? De minha parte prefiro mesmo buscar um lugar mais isolado para pegar minhas ondas mesmo que com isso tenha que sacrificar à qualidade das mesmas. E certamente é desanimador pensar que chegará o dia em que será impossível encontrar este lugar isolado para se surfar em um raio de centenas de quilometros de onde você mora, principalmente se for em uma grande concentração urbana.
Se o surf há muito deixou de ser um segredo sagrado, privilégio de alguns poucos e afortunados seres superiores que conhecem uma conexão maior e mais plena com a natureza, a culpa realmente pode recair em parte no excesso de surfistas na água, que acentua as animosidades e aflora o que há de pior em todos nós. Mas é bem verdade que o simples fato de ser surfista não faz de ninguém uma pessoa boa e os lineups mundo afora estão repletos de babacas, assim como existem babacas em todo tipo de esporte, profissão e meio social.
E aí fica a pergunta: em quantas confusões o ex-campeão mundial Sunny Garcia já se meteu nos ultimos anos? Até quando ele sairá praticamente impune por seus atos violentos, como uma figura acima do bem e do mal? Muitos justificam o seu comportamento como reflexo da cultura havaiana que teve que impor no braço as leis para a prática do surf nas ilhas mais concorridas do planeta. Mas basta lembrar que esta mesma cultura havaiana é o berço do ícone primordial do surf, o lendário Duke Kahanamoku que em sua sabedoria dizia: “Não tenha pressa, as ondas vem. Deixe os outros ir, pegue outra".
O que realmente desanima é perceber que pessoas de temperamento agressivo, que estão constantemente se envolvendo em atos de violência dentro e fora d`água, muitas vezes são alçadas ao posto de símbolos de rebeldia e contestação, servindo como modelo de comportamento para as novas gerações. Existem inclusive marcas de surf que associam diretamente sua imagem a esses famigerados “bad boys” que se vangloriam de expulsarem pessoas na água a base de socos, pontapés e toda sorte de intimidações físicas e verbais.
Obviamente que haverá muitas versões para cada situação de tensão ocorrida no mar e muitas vezes alguns folgados e fominhas apanham por puro merecimento, já que, em seu egoismo cego, parecem fingir estar surfando sozinhos. Mas, em linhas gerais, o ordenamento dentro do outside se faz pelo respeito à habilidade e aos mais velhos e, por certo, aos verdadeiros locais do pico, que devem sim ser respeitados – ou pelo menos assim deveria ser.
Sinceramente, não entendo o olhar condescendente de muitos quando relembram figuras do passado que, muito além do possível talento em destruir as ondas, ficaram mais conhecidas e temidas pelas surras e humilhações aplicadas em algum novato ou forasteiro que se aventurava a surfar determinada onda. Nas palavras de muitos, fica no ar uma coisa meio nostalgica e folclórica, que acaba amenizando a realidade dos fatos, onde a violência é quase que um elemento divertido dentro das histórias contadas.
Na minha opinião, nada justifica a prática sistemática da intimidação. Não sou da época do Quebra Mar no Rio, mas sei bem o quanto é dificil disputar uma onda da série no Arpoador ou na Joaquina em Floripa. Em Santa Catarina, picos como a onda de Atalaia possuem regras que desafiam o direito universal de ir e vir em qualquer praia – mal comparando, seria como o poder paralelo do tráfico de drogas em uma favela carioca. O litoral brasileiro está repleto de exemplos como estes de norte a sul e vemos que, mesmo em lugares onde tradicionalmente o povo é mais educado como na Austrália, as tensões geradas pelo crowd há muito deixaram as coisas fora de controle nos picos mais disputados.
Num mundo ideal, nada disso seria preciso e realmente não sei dizer quais seriam as medidas possíveis para produzir um ordenamento harmonioso nos picos de surf ao redor do planeta. Mas para mim fica claro que existe uma perigosa inversão de valores, quando a truculência é incensada a ponto de produzir ícones do surf festejados por sua personalidade forte e marcante associada à violência. Pior ainda quando esta se manifesta em forma de grupo, como “black trunks”, “bra boys” e tantas outras gangues aquaticas que se popularizaram em filmes e materias de revista, a ponto de ganharem uma aura especial.
O fato é que muitos destes caras que saem distribuindo pancadas quando estão nervosinhos, depois gostam de posar como gentis pais de família e amigos dos amigos, que, por algum motivo, perderam a cabeça e merecem ser perdoados, pois na verdade possuem “um grande coração”, como bem apontou o editor do site Inertia Tetsuhiko Endo em recente artigo sobre o mesmo tema chamado “Fight Night: Examining Violence in Surfing. Neste cenário, toda violência se justifica por um simples destempero provocado pela emoção a flor da pele que o responsável por um episódio de violência não conseguiu controlar, já que é uma criatura muito “intensa”.
foto surrupiada do site da Alma Surf
Na minha opinião grande parte destes camaradas não passam de psicopatas que sabem calculadamente se moldar de acordo às necessidades. Hoje muito se discute nas escolas os efeitos nefastos do bullying - nome dado ao assédio físico e psciológico entre crianças. As brincadeiras humilhantes desde sempre se fizeram presentes também dentro d`água no convívio entre os surfistas, onde impera e lei do mais forte e todo mundo em algum momento, em maior ou menor grau, já presenciou ou sofreu na pele este tipo de violência de alguma maneira. Os autores do bullying geralmente se safam de qualquer punição e as vitimas podem desenvolver traumas que atrapalham para sempre a sua inserção social, desenvolvendo medos e fobias.
A verdade é que surfar em uma pico com crowd representa a antítese do prazer de surfar. Mas diante deste por vezes inevitável e duro teste de convivência, na divisão dos poucos recursos (ondas) disponíveis, somos chamados a exercitar nossas maiores virtudes. Saber se portar em uma situação de tensão social como em uma multidão feroz é sem dúvidas um verdadeiro aprendizado sobre o nosso próprio controle emocional diante da frustração de não poder curtir as ondas com tranquilidade e ainda ter que aturar um monte de figuras “cantando de galo” e sentindo-se superiores, revelando o que há de pior na conduta humana. Diante de injustiças enervantes como esta, a melhor alternativa é mesmo respirar fundo e tentar por em prática os conselhos do velho Duke: Não tenha pressa, as ondas vem. Deixe os outros ir, pegue outra". Aloha!
Coluna publicada na edição 35 da revista Parafina
8 comentários:
Nunca sai no braço com ninguém por onda, mas vejo que acontece na maioria das vezes "folgados e fominhas apanham por puro merecimento".
Pois é, pegando o gancho do Fábio, mas não querendo justificar a truculência e comportamento dos locais violentos, nunca vi surfista que trata os outro com respeito e bom senso se meter em confusão. O negócio é seguir a frase do Duke mesmo.
Aproveitando, queria sugerir um post sobre outro tipo de localismo: o dos pescadores, durante a porcaria de temporada da tainha. Abraço!
Belo texto!
..e o comentário do Fabinho é real, o assunto "folgados e fominhas apanham por puro merecimento" merece um capitulo a parte... hehe
Eu acho paradoxal condenar o aumento do crowd quando nos referimos a um esporte - um ritual e até mesmo uma prática abençoada para alguns - tão belo como o surf. Parece egoísmo de surfista que nunca fez uma surf trip ou comportamento de local que se sente dono da natureza. Eu quero que mais pessoas surfem, que mais amigos meus surfem, que realmente vivamos uma cultura e espírito do surf. Essa é uma realidade que vivemos e o que nos cabe é tentar tornar as coisas boas para todo mundo e, de qualquer forma, o próprio mar será sempre o último responsável pelo "controle populacional" do surf. Os problemas só começam realmente a aparecer quando encontramos uma massa de surfistas cada vez mais estúpida e irracional enchendo as praias. Se mais surfistas se mostrassem homens de valor e não boçais armados de violência, mesmo um pico crowdeado seria mais suportável em função da educação e do respeito e não da famosa "lei do mais forte", que é um completo retrocesso em termos de humanidade. Infelizmente, parte da indústria do surf é responsável por essa ideologia ao se apropriar da prática do surf e esquecer de sua alma, oferecendo a qualquer um uma imagem superficial, comercial e competitiva do ato de pegar ondas. A essência do surf tornou-se hoje alternativa ao próprio esporte do surf. Essa me parece ser a realidade de pegar ondas hoje. Talvez se fizermos mais como o Duke, isso possa mudar no futuro. Parabéns por escrever um ótimo texto sobre esse tema muitas vezes desagradável. Boas ondas!
Extraordinário artigo este! Fica a pergunta: com quantas pessoas bacanas vcs já tiveram problemas no lineup? Se quem está ao nosso lado está a vibrar de sorriso feito, alto astral, em grande conversa connosco, isso vai estragar a session? Menos uma onda vai fazer diferença? Até hoje só tive problema (e poucos) na água com «palhaços» puros! No fundo é tudo uma questão de educação e valores, e isso quem não tem não tem...
http://novono.wordpress.com/2011/03/29/share-a-wave/
Saudações e boas ondas
Filipe
A revisa tá alucinante e excelente. Essa matéria mostra mesmo q figuras como Garcia e sua expressão orangotango selvagem, só é nociva ao surf e as novas gerações.Coitado de seus filhos q vão amargar, ouvir q o pai, foi campeão mundial e pagou vale em todo lugar q surfava.Isso não é honra para homen nenhum é desonra.E um dia um mais irado ainda desconta. Deus é fiel!
Abçs e paz a todos
Castro pereira
Recebemos as visitas em nossa casa debaixo de porrada? E qdo vamos visitar, chegamos na casa alheia de pé na porta, tomando conta de tudo? Parece tão simples: respeito, educação e cordialidade, não precisa nada além disso.
Respeite e sera respeitado,tem muita agua neste planeta
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