Figue

16 de setembro de 2010



As boas histórias merecem ser contadas e repetidas várias vezes. No caso do personagem Elias Diel, o "Figue" - um surfista que voltou a pegar onda mesmo depois de ter perdido a visão em um acidente de automóvel aos 16 anos -, os leitores mais assíduos deste blog certamente já estão familiarizados com a sua incrível trajetória de vida. Para estes, e aqueles que ainda não o conhecem, deixo aqui a versão completa da matéria com Figue que publiquei na edição de outono da revista Soul Surf.

Para os incrédulos, fica ainda um registro inédito em vídeo da onda descrita na abertura do texto. Um material valioso recuperado pelo camarada Antonio Zanella, que conseguiu resgatar estas imagens, mesmo depois de ter a sua camera roubada e um HD queimado!



Fluindo com a Natureza

A cena é pra lá de inusitada: numa concorrida sessão de surf em um uma onda que quebra sobre uma rasa laje de pedra, cerca de quinze surfistas amontoados no pico abrem mão de remar para a melhor onda da série e gritam palavras de incentivo para um único homem. Ele rema com vontade e, com a espuma já atingindo as suas costas, consegue ficar em pé sobre a prancha e completar o difícil drop, percorrendo a onda até o final, para delírio geral de todos os que estão dentro d`água.

Minutos antes, naquela manhã de dezembro, o secret spot na região de Balneário Camboriú (SC) oferecia aos visitantes a tradicional receita de prevenção contra o crowd: olhares intimidadores dentro d`água e uma disputa ferrenha pelo posicionamento em busca do prazer individual de cada surfista. Um sentimento egoísta e infelizmente típico do surf, que se dissipou como mágica, na energia daquele homem capaz de promover a união de todos em torno de sua felicidade.



O autor da façanha se chama Elias Ricardo Diel, mais conhecido como Figue, um surfista que, apesar de ter ficado cego, voltou a pegar onda e se acostumou a fazer o impossível parecer fácil, dentro e fora do mar. Conheci a sua incrível história de superação a partir do premiado documentário “Uma Luz no Fim do Tubo” do jornalista Antônio Zanella, que resgata a trajetória de Figue desde a sua promissora carreira como surfista amador, interrompida pelo acidente de automóvel que lhe tirou a visão aos 16 anos de idade, até o longo processo de recuperação que o trouxe de volta ao surf quase duas décadas depois.



Chegando com Zanella à bela praia Brava em Itajaí (SC), fui recebido pelo simpático Figue em sua casa, que há três anos também abriga o estúdio de yoga Ashwatta, onde ele ministra suas aulas. Com um telefone que não parava de tocar e na companhia sempre atenta do cão-guia Winter, Figue conversava animadamente com alguns de seus muitos amigos para saber sobre as condições do surf em todo o litoral catarinense.

A cena faz parte da rotina de Figue nos últimos três anos. Quando não está dando aulas de yoga, ele procura surfar sempre que possível, - em muitas ocasiões até duas vezes por dia -, perto de sua casa na Praia Brava, e em picos como Mariscal, Navegantes, e até mesmo na temida onda de Atalaia – onde exerce o seu poder de aplacar o forte localismo com sua energia positiva e agregadora.

A curiosidade imediata é tentar compreender qual é a sensação de surfar uma onda sem poder enxergá-la. A resposta está no som, ou melhor, no silêncio: “Eu me guio basicamente pelo som da onda, o volume da água na hora em que ela ganha volume e se arma”, explica Figue. Ao sentir o ruído da espuma, ele realiza o movimento instintivo da cavada em busca do pocket da onda onde procura ouvir o silêncio da parede. Daí pra frente, ele procura relaxar e acelerar no trilho da onda, vivendo intensamente a energia única de deslizar sobre o oceano. “O objetivo do surf é não lutar e sim se integrar de maneira harmônica com a onda, fluir por ela”, ensina ele, na mais pura receita de soul surf.



Mas o caminho até esta rotina de prazer ligada ao surf foi longo e penoso. Logo após o terrível acidente de automóvel, Figue ficou compreensivelmente abalado e demorou cerca de três anos para começar a sair de casa e encarar os desafios de sua nova realidade. Com o apoio da família e dos amigos, ele passou a se aventurar em pedaladas em uma bicicleta adaptada para duas pessoas e também a treinar jiu-jitsu.

Pouco tempo depois, quando iniciou a pratica de yoga e escaladas, Figue começou a desenvolver a auto-confiança e a paz de espírito que hoje lhe permitem viver uma vida plena e cheia de realizações. Ele acredita que estes foram os dois pilares essenciais para a sua volta ao surf: “A escalada foi fundamental para o aprendizado em relação à natureza, saber sentir, ler e respeitar os seus sinais, descobrindo nesta relação o verdadeiro contato com Deus e a minha própria alma”, afirma ele, que traz no currículo escaladas em locais como a Serra dos Órgãos e o Pão de Açúcar (RJ), além de aventuras nas montanhas geladas da Patagônia.

Com o yoga, Figue encontrou a paz de espírito e o auto-conhecimento que o fortalecem: “O yoga é estar presente, estar atento ao momento, conectado com a alma, sem a influencia do ego. Buscar aquilo que te preenche elimina qualquer angustia e te faz sentir conectado com a tua própria essência”, ensina o mestre que estudou a prática por cerca de 12 anos e é professor de hatha-yoga há mais de seis anos - tive o privilégio de participar de uma aula com Figue, desfrutando de suas sábias reflexões e metodologia, além de curtir o som relaxante do sruti, instrumento que ele trouxe de sua viagem para a Índia.



Mas o oceano representava ainda um último desafio para Figue alcançar a plenitude esportiva dos tempos em que disputava baterias em campeonatos amadores de surf, com amigos como Rodrigo Dornelles, Guga Arruda e Neco Padaratz. Criado nas ondas de Torres (RS), o jovem competidor gaúcho, que chegou a ganhar alguns campeonatos e a obter patrocínios, agora não conseguia mais se sentir a vontade dentro do mar: “Cheguei a dar algumas remadas, mas quando a água entrava no ouvido, eu ficava inseguro, principalmente com o barulho de muita gente no mar”, relembra.

Já haviam se passado 17 anos do dia do acidente e Figue, agora com 33 anos, ficava cada vez mais fissurado ao ouvir os amigos combinando de ir surfar ou falando sobre o último swell. O desejo supremo de poder voltar a surfar fez ele persistir em sua superação mental e as sessões de surf nas calmas ondas da praia do Marambaia passaram a ficar cada vez mais constantes e menos frustrantes. Assim, sempre com o apoio do irmão Claudio e dos muitos amigos que o orientavam para as condições do mar, Figue foi chegando cada vez mais perto de realizar o seu desejo.



Até que em 2006, num belo dia de ondas no mesmo secret-spot com fundo de pedra onde presenciei ao vivo a sua performance nas ondas, Figue afirma ter finalmente se reencontrado de vez com o surf. Ao decidir encarar as ondas pesadas e desafiadoras do pico ele viveu uma experiência definitiva no outside: “Remei até lá fora e falei pra galera `Eu quero pegar uma onda e vocês vão ter que me botar nela`”. Na quarta tentativa, ele finalmente conseguiu descer uma ladeira enorme, com bastante pressão, sentindo a adrenalina única proporcionada pelo surf em ondas grandes. “Lembro até hoje do som da galera berrando”, diverte-se.

A partir daí não havia mais limites para Figue no surf. Munido de sua prancha modelo fish, com bastante borda e largura para uma boa remada e flutuação, ele sempre encontra um amigo disponível para acompanhá-lo nas sessões de surf, onde aprimora cada vez mais a sua técnica e transmite a sua vibração positiva dentro d`água.

No ano passado, ele fez a sua primeira surf-trip para o Peru, onde lembra com empolgação das ondas de Lobitos, com suas paredes longas e silenciosas, somadas ao desafio de surfar em um local completamente novo: “Tenho profundo respeito pelo mar, mas o limite não existe. Procuro apenas sentir o coração, os avisos da natureza e ver até onde ela me deixa ir”, afirma.



Movido por esta filosofia, Figue é hoje um homem de 36 anos realizado e em total sintonia com o ambiente que o cerca. Querido por todos em sua cidade, ele transita com desenvoltura pelas ruas de Balneário Camboriú, onde conhece cada rua como se tivesse um GPS na cabeça. Com o seu cão-guia – fruto de um treinamento na escola de adestramento que montou com seu pai – ele luta pelos direitos das pessoas com deficiência, em busca de uma maior socialização promovida pelo poder de locomoção conferido pelos cães.

Não que Figue dependa disso, pois no tempo em que estive com ele, sua casa esteve sempre cheia de amigos que se agregam em torno de sua energia e carisma. Companhia feminina também não lhe falta, mas a menina de seus olhos é mesmo a pequena Joana, sua filha de apenas 05 anos de idade.



De espírito jovem e brincalhão, Figue parece haver encontrado nas coisas mais simples a fórmula da felicidade, que compartilha com suas atitudes e palavras, onde a relação com o mar é o exemplo maior: “O oceano nos ensina que nunca estamos realmente no controle, que estamos sempre fluindo. Foi quando comecei a me entregar para o mar e relaxar, ao invés de lutar contra ele, que as coisas começaram a dar certo”, revela.

Numa recente viagem ao Chile para participar de um encontro de yoga, o desempenho nas ondas geladas do país lhe renderam o convite para participar de um popular programa de auditório. No meio da entrevista com Figue, o apresentador de TV fez uma surpresa e chamou ao palco o ex-jogador de futebol Elias Figueroa, bicampeão brasileiro pelo Internacional e maior ídolo de João Diel, o pai de Figue – daí o nome e o apelido do filho. No inesperado encontro dos xarás, a constatação de que este mesmo nome agora faz referência a dois diferentes heróis.

Assista ao filme Uma Luz no Fim do Tubo:

4 comentários:

Junior Faria disse...

Sensacional.

Bruno disse...

Sem palavras... que exemplo de superação. Que história de vida!
Pessoas como o Figue dão prazer em conhecer nessa vida.

zanella disse...

fala meu querido,
nao sei nem mais como te agradecer o espaco e o apoio que desse nesse tempo todo p/ gente..
alem de um grande jornalista, com um texto realmente incrivel que encanta o leitor, se torna-se um grande amigo!
continua com esse trabalho..
e para quem quiser conhecer mais do Figue convido todos para o VI Semana Acadêmica de Atividade Motora Adaptada, cujo tema será Inclusão Educacional e as Novas Tecnologias! Eu e o Figue iremos palestrar no dia 28 de setembro de 2010 das 21 às 22hs no auditório do Centro de Ciências da Saúde e do Esporte da UDESC-Estreito. Quem quiser saber mais detalhes: entre em contato através do e-mail d7labama@udesc.br ou pelo telefone 3321-8651.

Castro Pereira disse...

Brother, não tinha visto essa sua matéria aqui, vi na revista e achei excelente. Conheço pessoalmente o Elias e sua familia. Mais uma vez parabéns pelo seu trabalho no blog e fora.
Saúde.

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